Dá para contar nos dedos das mãos a quantidade de mestres de torra certificados no Brasil. A curitibana Georgia Franco de Souza, 54 anos, faz parte desse grupo seleto. Mas a torrefação, que ocupa o piso inferior da Lucca Cafés Especiais, uma cafeteria de 650 m2 no bairro do Batel, em Curitiba, é apenas uma das atividades que lotam a agenda da empreendedora.
Em busca da melhor safra, pelo menos uma vez por mês ela visita fazendas em Minas Gerais, Espírito Santo e Paraná, onde acompanha colheitas e secagem.
Seu olhar, olfato e paladar apurados apontam o que lhe parecem grãos de qualidade excepcional. Da seleção junto aos cafeicultores, surgem os microlotes, edições reduzidas que fazem a fama da cafeteria, conhecida por vender cafés vencedores em várias premiações internacionais.
Em uma dessas andanças, a coffee hunter descobriu o que veio a se tornar “o café especial mais caro do mundo”. No ano passado, ao participar do projeto Cafés Autorais do Cerrado Mineiro — que conecta baristas aos produtores da região —, Georgia provou amostras na fazenda Bom Jardim, em Patrocínio (MG). “Encontrei um lote da variedade bourbon amarelo com características frutadas. Perguntei ao proprietário se poderia ficar com algumas sacas. Ele disse que estavam reservadas para um concurso, mas que me venderia uma parte.”
Meses depois, sacas do mesmo lote vendido para Georgia conquistaram o primeiro lugar no Cup of Excellence Brazil 2017. Na sequência, os grãos foram arrematados em leilão por importadores do Japão e Austrália por US$ 17 mil a saca — batendo o recorde mundial da categoria.
A valorização dos produtores de cafés especiais é um dos trunfos do negócio. “Chegamos a pagar pela seleção o mesmo preço praticado na exportação dos grãos. Assim, o produtor se sente valorizado e cria uma relação estreita conosco”, afirma a empreendedora. A curadoria apurada de Georgia também é um fator de atração para os produtores. “Eles se sentem prestigiados quando escolhemos seus cafés”, afirma.
A proposta de aproximar o fazendeiro do consumidor final estava presente quando a Lucca Cafés Especiais foi aberta, em junho de 2002, com uma máquina de torra e cinco tipos de café. “Naquela época, era um desafio explicar que aquele grão de uma variedade distinta vinha de um lote específico e tinha passado por processos de fermentação.” Dificuldade típica de atividade pioneira: a cafeteria foi a primeira do Brasil especializada em servir e comercializar cafés especiais.
A ideia havia nascido três anos antes, quando Georgia, engenheira que atuava na área de informática, aproveitou as férias acumuladas para fazer um curso de gastronomia na França. “Na volta, falei para meu marido que queria mudar de vida e ele me apoiou. Larguei a carreira e comecei a pesquisar sobre cafés.” Ao descobrir que a safra de um amigo fazendeiro era de ótima qualidade, ela se ofereceu para cuidar da exportação. “Fui ver como era feito o preparo de grãos na Europa. Achei que valia a pena trazer o know-how para cá.”
Depois dessa experiência, não parou mais. Pesquisou em fazendas interioranas que tinham cafés certificados e visitou as principais feiras do mundo no setor. “Tornei-me sócia da associação internacional Specialty Coffee Association e trouxe de lá todo o material sobre tecnologia em grãos, torra e preparo.” E começou a participar de concursos como barista. Em seu primeiro campeonato brasileiro, ficou entre os finalistas. “Percebi que tinha prática suficiente para conduzir meu próprio negócio.”
Aroma da infância
O cheirinho da torra artesanal na fazenda do avô em Apucarana (PR) teve um peso importante na nova carreira. “Quando era pequena, as crianças da família entravam no cafezal e a brincadeira era ver quem colhia mais filipes, os grãos que ficam grudados uns aos outros. Como não havia energia elétrica, meu avô usava um torrador de ferro na fogueira ou no fogão a lenha. Eu tinha uns 7 anos e ainda me lembro do aroma.”
Devastada pela geada negra de 1975, a plantação de arábica da família não existe mais. A cultura cafeeira, no entanto, permanece viva no trabalho de Georgia, que honra a memória do avô explorando a maior variedade possívei de grãos e preparos.
Hoje, as sacas de microlotes ocupam um lugar de destaque no armazém da Lucca Cafés Especiais. Dali a especialista tira os grãos que são torrados pessoalmente todas as terças e quintas-feiras, em um ritual já conhecido dos frequentadores. Na loja, 35 rótulos de café compõem as prateleiras.
Ao cliente, cabe a escolha: levar em grãos, moído na hora ou em cápsulas. Utensílios exclusivos para preparo também estão à venda. Baristas treinados executam e explicam nove opções de tiragens em métodos filtrados, além da versão espresso, a mais pedida (cerca de 10 mil por mês). Para acompanhar a bebida, a empresária investiu em culinária de qualidade, com menu assinado pelos chefs Gabriela e Celso Freire. E, desde o ano passado, vende pães de fermentação natural, fruto da sociedade com o amigo Eduardo Feliz, pertencente a uma família tradicional da indústria de insumos para panificação.
Aberto em 2010, o Lucca Lab ocupa o mezanino da loja. Ali são oferecidos cursos para formar baristas, brewers (especialistas em cafés filtrados) e torradores. O laboratório já recebeu mais de mil alunos — do Brasil, Chile, Argentina e Paraguai — para atividades que vão de workshops de uma hora (R$ 50) até cursos de 3 dias (R$ 4,5 mil).
Os mais concorridos são os certificados pela Specialty Coffee Association. Muitos dos participantes são — ou se tornam — empreendedores do setor. “Fico feliz em passar o conhecimento adiante. Se há espaço para mais cafeterias similares à Lucca, é porque o mercado amadureceu.”
A expertise que envolve a seleção do produto, o cuidado com a torra e o preparo minucioso fez da Lucca a loja brasileira de cafés que mais acumula títulos em campeonatos. Seus baristas e provadores conquistaram 15 títulos, 9 vice-campeonatos e 13 campeonatos regionais.
No panorama mundial, conta com as melhores posições: o segundo lugar no campeonato Latte Art, na Coreia do Sul; o quarto lugar no Mundial de Cup Tasters, na Holanda; e o quinto lugar no Mundial de Brewers, na Austrália. Todos os vencedores foram treinados por Georgia. “Quando notamos um talento entre nossos baristas, investimos muito no funcionário. Para garantir o resultado final do café, cuidamos até mesmo da água que será usada. Ela é preparada utilizando a quantidade de minerais que nós mesmos calculamos. Uma vez levamos 25 litros numa viagem internacional.”
Em abril, ela embarcou para Seattle, nos Estados Unidos, para visitar a Coffee Expo e acompanhar os campeonatos internos norte-americanos. “Os concursos brasileiros serão em agosto e os vencedores vão para Dubai. Estamos no páreo.” A proposta de treinar campeões mundiais dá ainda mais visibilidade ao laboratório. “Não queremos apenas retorno financeiro, queremos a emoção da vitória.”
Hoje, o Lucca Lab é responsável por 10% do faturamento da marca, enquanto a loja física responde por 60%. Os outros 30% da receita vêm da DOP, torrefação aberta em 2011 na região metropolitana de Curitiba. A empresa comercializa no atacado grãos torrados e cápsulas para cafeterias e supermercados de todo o país. Há dois anos, a Lucca passou a vender também café online para consumidores finais.
Legado familiar
Juntos, os diferentes braços da empresa rendem um faturamento anual de R$ 5 milhões. “Crescemos 20 vezes em 16 anos de atuação”, diz a empreendedora. O começo não teve glamour. Georgia fez curso de empreendedorismo no Sebrae.
Depois, investiu R$ 50 mil do bolso e emprestou outros R$ 50 mil junto a órgãos de financiamento. Comprou os equipamentos aos poucos, sem se endividar. Por vezes, faltava dinheiro para arrematar as melhores safras, pois elas saem no final do ano, quando é preciso pagar o 13º e as férias dos funcionários. “Comprava menos do que eu gostaria, pois nunca dava um passo maior do que a perna.”
Formar bem o cliente foi a principal estratégia de marketing da Lucca. São os apreciadores entre 25 e 55 anos que alimentam o negócio, via consumo ou revenda de lotes especiais e microlotes. Georgia chegou a adotar o modelo de franquias, mas não funcionou. “Cuidar de franqueado exige um outro tipo de conhecimento, que eu não tenho. Manter a essência do que criamos é difícil. E essa é a minha prioridade.”
Para seguir buscando a excelência, da lavoura à xícara, a família foi fundamental. O marido, o engenheiro Luiz Otávio, deixou a profissão para administrar a empresa ao lado dela. Dos três filhos, os gêmeos, Camila e Marcelo, com 22 anos, têm atuação decisiva.
Camila começou a competir aos 12 anos e foi campeã brasileira de prova de preparo. Marcelo cuida do visual, das embalagens ao cardápio. “Para a seleção do projeto Cafés Autorais do Cerrado Mineiro, ele teve a ideia de elevar a autoestima dos produtores. Para isso, estilizou uma foto de perfil de cada um na frente do pacote.” Carolina, 26 anos, trouxe troféus em dois mundiais e hoje trabalha num laboratório de exportação de café na Guatemala.
A Lucca Cafés Especiais deve chegar em breve ao exterior. Atualmente, o sócio Eduardo Feliz prospecta pontos de venda em Santiago e Buenos Aires. “Vai ser tudo da maneira mais familiar possível e da forma que gostamos de cuidar, bem debaixo de nosso nariz.”