É uma conta que não fecha. A cada ano, a humanidade consome cerca de 350 milhões de toneladas de carne, segundo o The World Counts, que congrega dados de diversas organizações. Na média mundial, o volume de água necessário para produzir 1 kg de carne bovina é de 15,5 mil litros, de acordo com a Embrapa. Somente nos Estados Unidos, metade de toda a água consumida é gasta com o cultivo de grãos usados na alimentação do gado. Na outra ponta, a pecuária emite anualmente 7,1 gigatoneladas de poluentes como o CO2 na atmosfera, o que corresponde a 14,5% dos gases que provocam o efeito estufa, de acordo com a ONU. Resultado: se o ser humano não mudar os seus hábitos, em 2050 não haverá como suprir as necessidades de carne da população, as reservas de água estarão perto de se esgotar e o aquecimento global estará fora de controle. Trata-se, portanto, de um problema inadiável.
Vem das startups uma das principais respostas para essa questão: é o movimento das foodtechs, que usam tecnologia de ponta para substituir a proteína animal por ingredientes vegetais, que causam muito menos impacto no ambiente — e ainda têm a vantagem de fazer bem para a saúde. No Brasil, essa tendência vem se multiplicando, com dezenas de empresas dedicadas a criar todo tipo de alimento em seus sofisticados laboratórios — da carne bovina ao bacalhau, passando por ovos, leite e frango. Embora os métodos de fabricação variem, todas têm um denominador comum: a aversão aos métodos de produção que destroem o planeta, mais especificamente aqueles que se valem de animais, seja para o abate, seja para a produção de leite e ovos.
Engana-se, porém, quem acha que os produtos das foodtechs são voltados ao público vegano. Na verdade, o alvo principal aqui são os carnívoros. Não é à toa que foodtechs como Impossible Foods e Beyond Meat, duas das mais conhecidas nos Estados Unidos, fazem questão de incluir extratos avermelhados em seus hambúrgueres, para lembrar o sangue bovino — o efeito costuma ser conseguido com a beterraba. “O objetivo de toda foodtech é convencer quem come proteína animal a experimentar alternativas. Por isso, é fundamental que os produtos sejam análogos aos que dominam as prateleiras dos mercados”, diz Paulo Ibri, CEO e fundador da paulistana 100 Foods. A meta não é transformar todo mundo em vegano, mas propor uma redução do consumo de carnes e similares. “Se a maior parte dos consumidores aderir à ideia e virar flexitariano, a pressão que a pecuária exerce sobre o meio ambiente será bem menor.”
Para se ter uma ideia de como essas startups podem contribuir para salvar o planeta, basta comparar alguns números. Com a água necessária para produzir um único hambúrguer bovino é possível produzir 40 hambúrgueres à base de ervilha. A produção de 10 milhões de litros de leite de vaca resulta na emissão de 10.956 toneladas do nocivo CO2. O mesmo volume de leite de aveia, no entanto, produz cerca de 3,5 mil toneladas do poluente. A adesão das novas gerações a esse tipo de produto faz com que as foodtechs sejam muito atraentes para investidores. A chilena NotCo, que usa um algoritmo de inteligência artificial para criar comidas plant-based vendidas no Brasil, Chile e Argentina, já amealhou US$ 120 milhões — parte desse valor veio de Jeff Bezos, o criador da Amazon. Já a brasileira Fazenda Futuro, a mais conhecida do país, recebeu aportes no valor total de R$ 150 milhões. Prova de que o segmento está em plena expansão, com muito espaço para novos entrantes. Conheça a seguir as histórias e estratégias de algumas das mais promissoras foodtechs do país.
Ovos em pó
A companhia que mais produz ovos na América do Sul é o Grupo Mantiqueira, fundado em 1987 pelo mineiro Leandro Pinto, que ocupa o posto de CEO. Sua filha mais velha, Amanda Pinto, 30 anos, trabalhou ao lado dele por seis anos, como gerente de inovação e marketing. Em 2019, abandonou o cargo para abrir uma companhia que é o oposto do Grupo Mantiqueira: a N.Ovo, que tem como carro-chefe o chamado “ovo vegano”.
Trata-se de um pó à base de ervilha e linhaça que deve ser misturado com água, a uma proporção de 11 gramas para cada 39 ml. Cada embalagem do produto, vendida por cerca de R$ 20, contém o suficiente para “preparar” 12 ovos. O ingrediente é indicado para a confecção de bolos, pães, massas e panquecas. “Boa parte do sucesso do ovo tradicional tem a ver com suas funcionalidades”, diz Amanda, mineira de Itanhandu. “Deixar um bolo fofinho é uma delas. E isso é algo que um ovo vegano também faz.” Em outubro passado, foi lançada outra versão, à base de ervilha e soja, que permite preparar ovos mexidos e omeletes. Do portfólio da N.Ovo, constam ainda quatro sabores de maionese, elaboradas a partir da mistura de amido de batata, milho e óleo de girassol.
A empresa, a bem da verdade, nasceu como uma divisão do Grupo Mantiqueira. O evidente conflito de interesses levou à independência, prestes a ser formalizada. Diz Amanda, que não revela a quantidade investida: “Não quero negar o passado, mas a humanidade precisa adotar novas formas de produzir proteína sem recorrer a animais. Caso contrário, teremos de ceder cada vez mais terra para essa produção e não vai sobrar espaço para floresta nenhuma”. Para reverter o quadro, ela defende uma mudança de hábitos gradual. “Se todo mundo deixar de comer carne uma vez por semana, a ameaça ao ambiente já será muito menor”, diz. De sua parte, ela cortou todas as proteínas de origem animal, mas ainda come peixe — e, de vez em quando, até mesmo ovos tradicionais
Leite sem impacto
Quem vê esses números pensa duas vezes antes de tomar o café da manhã. Para produzir 73 litros de leite de vaca, o que corresponde a um copo de 200 ml a cada dia do ano, é preciso gastar 45.733 litros de água, manter como pasto uma área de 652 metros quadrados e emitir 229 quilos de gases que contribuem com o efeito estufa. Mas é possível reduzir consideravelmente esse impacto recorrendo a leites de origem vegetal, como os lançados em novembro passado pelo economista carioca Felipe Melo, 42 anos, e sua mulher, a geocientista sueca Alex Soderberg, 31. Com uma tecnologia que permite fabricar leite a partir da aveia, o casal consegue produzir a mesma quantidade acima usando apenas 3.512 litros d’água e emitindo 65 quilos de carbono. “Em matéria de sustentabilidade, o leite de aveia ganha até dos que são à base de outros vegetais”, diz Melo. “O de amêndoas, por exemplo, demanda muito mais água.”
A marca de leites Naveia é uma criação da foodtech Evolat, fundada pelo casal em 2017 — a quantia desembolsada e o faturamento são mantidos em sigilo. A ideia surgiu quando eles moravam em Berlim, onde os leites à base de aveia já são bastante comuns. Melo, que há tempos procurava uma proposta para empreender com propósito, se encantou com a possibilidade de trazer o leite vegetal ao Brasil. “Dizem que você nasce duas vezes na vida: a segunda é quando você entende o porquê. O meu segundo nascimento tem a ver com minha vontade de combater a exploração dos animais e a devastação do meio ambiente”, diz ele, que é vegano de carteirinha, assim como Alex. Os produtos da marca Naveia estão disponíveis em 140 pontos de venda em todo o Brasil.
Peixe de ervilha
Foi quando trabalhava em uma fábrica de motores a diesel, há dez anos, que o engenheiro mecânico Bruno Fonseca começou a se envolver com questões de sustentabilidade. “Na época, fui encarregado de encontrar maneiras para produzir motores menos poluentes. Pela primeira vez, entendi como eu estava colaborando com o impacto no meio ambiente”, lembra Fonseca, hoje com 33 anos. “Isso mudou minha vida.” O emprego seguinte foi em uma multinacional agroquímica ligada à agricultura. “Fiquei assustado ao ver a quantidade de pesticidas e herbicidas consumidos pelo setor de alimentação”, diz.
Sua primeira empresa de produtos veganos, fundada em 2013, foi a Eat Clean, que tinha entre seus principais produtos pastas de amendoim com sabores especiais e suplementos feitos com proteína do arroz. Há três anos, o surgimento dos hambúrgueres de carne vegetal motivou o nascimento da The New Butchers. Nessa nova investida, o empreendedor se dedicou a criar diferentes produtos que imitam as propriedades da proteína animal. Para produzir carne e frango, são usados ervilha e coco; jaca e ervilha são os ingredientes principais do salmão e do bacalhau — este vendido já pronto, acompanhado por pimentões e azeitonas, ou então em forma de bolinhos.
No primeiro trimestre deste ano, a The New Butchers cresceu 300% em relação ao mesmo período de 2020. A marca, que já está presente em 1,5 mil pontos de venda, ganhou sócio ilustre em maio do ano passado — Paulo Veras, um dos fundadores da 99, primeiro unicórnio brasileiro. “Ele compreendeu nosso propósito, que é contribuir com a preservação do planeta por meio da alimentação”, diz Fonseca. “Fico feliz ao perceber que gastamos apenas 10% da água que um fabricante de hambúrgueres tradicionais gasta, por exemplo. Essa é a medida do meu sucesso.”
Sabor especial
Imagine chegar à lanchonete e pedir um McChicken vegano. Não, o McDonald’s ainda não criou uma versão sustentável do famoso sanduíche. “Mas você pode preparar o seu em casa”, diz o paulistano Paulo Ibri, 33 anos, CEO e fundador da 100 Foods. A foodtech fabrica um empanado feito de ervilha que imita o hambúrguer de frango, e uma maionese de origem vegetal. “Daí é só comprar pão com gergelim e alface, e fica igualzinho”, brinca Ibri.
Fundada em 2018, a 100 Foods não trabalha com nenhum ingrediente de origem animal. Além dos produtos citados, fabrica ketchup, mostarda, molho barbecue, três tipos de tempero e um hambúrguer que imita o de carne, também à base de ervilha. Maioneses são cinco, todas com a ervilha como ingrediente principal, uma delas acrescida de óleo de abacate. Espera-se para 2021 o lançamento de mais seis congelados. “Procuramos colocar no mercado sempre produtos que conversam entre si”, diz Ibri. Hoje encontrada em mais de 1,5 mil pontos de venda, a 100 Foods cresceu 200% no ano passado — o empreendedor não revela o faturamento.
Flexitariano, ele diz que sua missão é melhorar a saúde dos consumidores, em particular, e do planeta em geral. “O primeiro fator para a adesão aos nossos produtos é a procura por um estilo de vida mais saudável. Mas oferecemos a mesma praticidade dos alimentos industrializados tradicionais, que fazem sucesso graças à correria do dia a dia”, afirma. Ao encontrar substitutos para a proteína de origem animal, ele acredita dar uma contribuição valiosa para evitar a degradação do meio ambiente. “A quantidade de terra exigida pela pecuária, o volume de ração gasto com a alimentação de aves e a emissão de poluentes envolvida não são sustentáveis”, diz.
Império das plantas
Oito anos atrás, o paulistano Fabio Zukerman beirava os 140 quilos e se queixava de uma persistente dor no pé e de uma perigosa apneia. Hoje, 50 quilos mais magro e livre dos dois transtornos, associa a volta por cima à decisão de aderir, há quatro anos, à mesma dieta praticada pela esposa, a nutricionista Daniele Zukerman. “No início não foi fácil, mas de uns anos para cá a quantidade de produtos veganos realmente saborosos aumentou consideravelmente”, diz ele, que é formado em hotelaria.
O casal começou a empreender no ramo de alimentação com o PlantMade, restaurante vegano que funcionou no bairro de Higienópolis, em São Paulo, entre 2019 e 2020. No mesmo endereço, Fabio e Daniele montaram em seguida o Green Kitchen, com pratos como o Mac’n’cheese com queijo de castanha, cogumelos e farofa de pão. O restaurante também é a sede de duas marcas criadas só para o delivery, o Plant Burger e a Plant Pizza.
Em março de 2020, a dupla se associou à Basi.co, que trabalhava com queijos e manteiga veganos desde 2017, e houve uma fusão entre as empresas. Em agosto passado, Fabio e Daniele também viraram sócios da marca de hambúrgueres veganos Gerônimo. Agora, comandam o Grupo Planta, que inclui as duas foodtechs, o restaurante e as duas marcas de delivery. “Cada um dos três braços da holding cresceu 100% no ano passado”, diz Fabio, que não fala sobre faturamento. Um dos ingredientes de que o grupo mais se orgulha é a sustentabilidade. “Queremos deixar um ar respirável para nossos filhos, e a alimentação é a principal ferramenta para isso”, diz Fabio.
Pacote completo
Criada em 2019 por Marcos Leta e Alfredo Strechinsky — fundadores da marca de sucos Do Bem, arrematada pela Ambev há cinco anos —, a Fazenda Futuro é a primeira foodtech brasileira a ganhar projeção mundial. Depois de arrebatar um aporte de R$ 115 milhões no ano passado, liderado pelo banco BTG Pactual, passou a exportar para a Europa e para os Emirados Árabes. As vendas no exterior já respondem por 25% do faturamento, não revelado, e a meta é que subam para 40%, com a iminente entrada no mercado norte-americano.
O principal produto da empresa, que emula o hambúrguer bovino, leva soja e ervilha não transgênicas, beterraba, canola e óleo de coco. A Fazenda também produz frango, carne moída, linguiça e almôndega, todos à base de plantas. “Até o fim do primeiro semestre, lançaremos o Futuro Bacon”, diz Leta. “Nossa missão é mudar a maneira como o mundo come carne e, para isso, precisamos desenvolver novas proteínas.” Caso tivesse optado pela pecuária tradicional, a Fazenda Futuro teria sido obrigada a desmatar até aqui uma área maior que a de sete parques do Ibirapuera — segundo um estudo de impacto ambiental encomendado pela foodtech. “A opção por alimentos plant based faz uma enorme diferença, pois gastamos menos terra, menos água e menos CO2 que os fabricantes de carnes, além de não sacrificar animais”, diz.
Em prol do meio ambiente, a companhia também compra localmente mais de 80% dos ingredientes utilizados — quanto mais curto o trajeto, menor é a emissão de gases poluentes. No final do ano passado, testes para viabilizar o uso de embalagens biodegradáveis, feitas a partir da cana-de-açúcar, começaram a ser executados. A novidade já embrulha tanto o hambúrguer que imita carne quanto o frango de mentira. “Não adianta entregar um produto plant based sem uma experiência sustentável completa”, afirma Leta.